embora

então, quando eu tiver ido,
ficarão as flores para você cuidar
não saberá qual foi a última vez
em que as reguei
o tempo de cada uma
seu brotar, seu renascer
ficarão sementes por plantar
suas mãos maduras
acolherão, revolverão a terra
o perfume do manjericão
lembrará as tardes
em que eu explorava 
os mundos do seu quintal
e no tempo da sua mão
serei terra, serei chão.



outono

é imperioso o passar das flores
quando se caminha certa dos passos
a perder
buscava um nome para isso
e nas direções do vento 
deixei mais que sombras
um poema feliz

um poema feliz 
não existe
queria um nome para o que sinto
a busca que nunca vai terminar
acolher o que dói 
tem sido minha maior vitória
a história dos que não vencem
é a minha memória 
menos triste

*

floriografia

 tentei ler as flores que trazia nas mãos
mas tudo o que vi foram ramos secos
de um tempo que já passou

*

como quem recebe batidas repetidas no meio da cara
tenho apoiado as mãos no rosto e tentado respirar
também eu morro um pouco 
não é uma escolha
tenho andado com a pressa de mil formigas
atordoadas, mas precisas no trabalho
de não perder os pulsos
não se pode contar com tijolos encaixados
por mãos que não sabem o caminho de casa
como quem recebe repetidos chutes
tenho sentido o gosto vermelho da noite
e não consigo fechar os olhos 
meu deus, não é possível fechar os olhos
como quem recebe mil socos na cara e
fica com os olhos inchados a vida atravessada 
um borrão escuro preso na garganta
cuspir essa merda toda um incêndio
saber o ponto exato onde acertar 
também morre quem atira, é fato
mas é preciso atirar



porém nada dizia


vivi com a sombra de meu pai nos olhos
quando me deitava para dormir, era nele que pensava
nas palavras que nunca ouviu, no abraço que não deu
chorava nas tardes por imaginar a notícia de sua morte
enterrei-o muito antes do tempo
mas as dores já estavam em mim enterradas 
com tanta angústia e desespero 
que me doíam o peito desde pequeno tão cansado


*




desdobramento

as rugas em volta dos olhos
desenham a passagem do tempo
traçam caminhos recém descobertos
quando a manhã atinge o rosto
dentro dos olhos existe
a luz de uma vida inteira 
não  há sinal de sombra 
ou marca de passos perdidos
o olhar direto e altivo 
desloca o fio contínuo 
enxerga entre as correntes 
naufrágios e desalinhos
e contorna no fim dos dias
as chaves de todas as portas

*

colheita

recolhi do quintal o corpinho de uma abelha
segurando-o nas mãos, fiquei pensando
o que seria daquele corpo 
com mãos boas que o sustentassem 
mas me lembrei ainda 
que abelhas não precisam de mãos boas
porque se sustentam sozinhas
em conjunto,  sustentam o mundo
e o céu de poucas nuvens e nenhum mel
coloquei o corpinho no chão, tão sozinho
notei, então, que havia perto dele 
outro corpo de abelha
a morte das abelhas escapou-me pelas mãos
e cortou dos meus olhos toda doçura

*

embora

então , quando eu tiver ido, ficarão as flores para você cuidar não saberá qual foi a última vez em que as reguei o tempo de cada uma seu br...